Megaoperação no Rio: O Impacto Invisível na Saúde Mental da População
A megaoperação policial que ocorreu nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, no final de outubro de 2025, entrou para a história como a ação mais letal já registrada no país, com um saldo de 121 mortos. Enquanto as imagens de confrontos e a lista de nomes dominam o noticiário, um impacto silencioso e profundo se alastra entre os moradores dessas comunidades: a crise na saúde mental desencadeada pela exposição à violência armada extrema.
O Trauma que Ressoa nos Lares Para além das estatísticas oficiais, a vida nas comunidades expostas a operações policiais de grande porte é marcada por uma rotina de medo e estresse. Uma pesquisa realizada pela ONG Redes da Maré em 2022 investigou os efeitos da violência armada na saúde mental dos moradores do Complexo da Maré e revelou dados alarmantes:
Quase 31% dos entrevistados relataram prejuízos à saúde mental e emocional decorrentes da exposição à violência.
Desses, 26% experienciaram episódios depressivos e 25,5% sofreram com ansiedade nos três meses anteriores à pesquisa.
Entre aqueles que se viram diretamente no meio de tiroteios, o impacto foi ainda mais severo: 44% acreditam que sua saúde mental foi prejudicada.
Esses números não são meras porcentagens. Representam pessoas reais que desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, fobias e, em casos mais graves, pensamentos suicidas.
As Crianças: As Vítimas Mais Vulneráveis Os impactos são particularmente devastadores para as crianças. A mesma pesquisa da Redes da Maré mostrou que 38,2% dos cuidadores relataram que as crianças sob sua responsabilidade já testemunharam algum tipo de violência, incluindo a violência policial.
"Diante disso, os pais relatam as consequências na saúde mental dessas crianças, como aumento da agressividade, da ansiedade, da perda do interesse na escola e da produtividade escolar. São elementos muito preocupantes", alerta Luna Arouca, coordenadora da ONG.
Entendendo o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) O TEPT é uma condição de saúde mental que pode se desenvolver após a exposição a um evento traumático envolvendo ameaça real de morte, lesão grave ou violência sexual. Em contextos de violência armada, esse trauma pode afetar não apenas quem vivencia diretamente os confrontos, mas também testemunhas e mesmo aqueles que sabem que o evento ocorreu com alguém próximo.
Sintomas do TEPT Os sintomas são geralmente agrupados em quatro categorias principais:
Revivência do trauma: Memórias e pesadelos angustiantes e intrusivos sobre o evento, e até reações dissociativas onde a pessoa age como se o evento estivesse acontecendo novamente (flashbacks).
Esquiva e evitação: Tentativas de evitar lembranças, pensamentos, sentimentos, pessoas e lugares associados ao trauma.
Alterações negativas no humor e cognição: Pensamentos negativos persistentes sobre si mesmo ou sobre os outros, culpa, incapacidade de recordar partes importantes do evento e dificuldade de experimentar emoções positivas.
Hipervigilância e reatividade: Estado constante de alerta, dificuldade de concentração, irritabilidade, surtos de raiva e reações exageradas a sons ou movimentos.
A Ciência por Trás do Trauma O que acontece no nosso cérebro durante e após um evento traumático?
Sistema de Alerta Crônico: Segundo Daniel Barros, psiquiatra e professor da USP, episódios violentos disparam uma espécie de "alerta" no cérebro, com aumento da liberação de adrenalina. "Quando você é exposto cronicamente a situações de risco, esses alertas passam a ser cronicamente ativados. As pessoas passam a ficar mais tensas, com mais dificuldade de relaxar a ponto, às vezes, de nem perceber que estão com esse sistema de alerta ativado, mas cronicamente, isso leva a desgaste emocional".
Processamento de Memórias: O hipocampo, parte do cérebro responsável por processar memórias, pode ser afetado por níveis elevados de hormônios do estresse. Isso impede que as memórias do evento traumático sejam processadas adequadamente, fazendo com que a pessoa relembre o acontecimento como se o risco ainda estivesse presente, em vez de algo que pertence ao passado.
Caminhos para o Cuidado e a Recuperação Diante desse cenário desafiador, é fundamental entender que existem tratamentos eficazes e estratégias de cuidado que podem ajudar os afetados a recuperarem seu bem-estar.
Tratamentos Baseados em Evidências De acordo com uma revisão sistemática e meta-análise publicada no British Journal of Psychiatry, os tratamentos psicológicos de primeira linha para o TEPT devem ser focados no trauma. Os mais eficazes são:
Terapia Cognitivo-Comportamental Focada no Trauma (TFCBT)
Dessensibilização e Reprocessamento por Movimentos Oculares (EMDR)
Essas terapias ajudam a reprocessar as memórias traumáticas de forma adaptativa, reduzindo seu poder de desencadear os sintomas debilitantes do TEPT.
Estratégias de Enfrentamento Imediato Para aqueles que estão enfrentando o trauma no momento, o psiquiatra Daniel Barros recomenda:
Buscar uma sensação de segurança: "Não estamos falando de mascarar a realidade, mas dentro deste contexto, garantir o mínimo de segurança, evitar a reexposição ao trauma".
Apoio da comunidade: "Se dentro disso, seja com aparato de ONGs, de igrejas e da comunidade, quaisquer aparelhos que estejam disponíveis, for possível aumentar a sensação de segurança, isso pode ser muito positivo".
A Urgência de Políticas Públicas Integradas Especialistas são unânimes em apontar que a resposta precisa ser mais ampla e estruturante. Joana Fontoura, oficial do UNICEF Brasil, defende:
Acolhimento imediato e acompanhamento psicosspecial a longo prazo.
Educação emocional nas escolas "pegando desde a primeira infância até a adolescência, para que diferentes fases recebam conteúdos necessários de fortalecimento emocional".
Já Luna Arouca, da Redes da Maré, reforça a necessidade de:
Ampliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para atender a população vulnerável.
Criação de um ecossistema que providencie direitos e oportunidades: "Os movimentos sociais e os movimentos de favela reivindicam a presença do Estado por meio de outras frentes de trabalho que não somente a segurança pública".
Conclusão: Rompendo o Ciclo do Trauma A violência armada, especialmente em operações de grande escala como a ocorrida no Rio, deixa marcas que não se apagam com o fim dos tiroteios. O sofrimento mental é uma realidade invisível, mas profundamente debilitante para milhares de adultos e crianças condenados a viver em meio ao conflito.
Reconhecer o impacto psicológico da violência como uma questão de saúde pública é o primeiro passo. O próximo é exigir e implementar políticas que priorizem o cuidado mental como um direito fundamental, tão urgente quanto qualquer outra necessidade básica. A reconstrução de um território não se faz apenas com infraestrutura física, mas com a reconstrução subjetiva das pessoas que nele habitam.
Se você ou alguém que você conhece tem sido afetado por essa realidade, busque ajuda. Conversar com um profissional de saúde mental, buscar apoio em serviços públicos de saúde ou mesmo em organizações comunitárias pode ser o início da jornada de cura. Sua saúde mental importa.